quarta-feira, 6 de março de 2013

Rápido e Devagar

Então temos o livro de Kahneman. Não sei que dizer ante o calhamaço: 500 páginas, fora os apêndices, alentados.
Pra começar, realmente acreditamos saber o que se passa em nossa mente; achamos que um pensamento consciente leva ordenadamente a outro, mas esse não é o caso na maioria das vezes: impressões, pensamentos e atitudes surgem em nossa consciência "do nada", e muita vez sequer são percebidos.
Pediu-se a pacientes cegos, com danos ao córtex visual, que identificassem círculos ou quadrados numa tela. Acertaram em média 50%, índice de escolhas aleatórias. Em outro experim­­ento, os pacientes deveriam dizer se a face mostrada era amiga ou inimiga, o que foi identificado corretamente em dois terços dos casos. Milagre? Chute? Não, aparentemente.
A área fusiforme (especializada em reconhecer rostos), intacta, estava analisando e julgando, inconscientemente, os rostos mostrados, embora o córtex visual estivesse inativo (abstraio a guerra entre localizacionistas e o pessoal das redes dinâmicas – Nicolelis e outros –; bem como a teoria das ilhas de visão como explicação para o fenômeno). Blindsight, ou visão cega, é o termo para essa condição, largamente conhecida: conscientemente a pessoa está cega – mas partes do cérebro ainda enxergam, e julgam.
Segundo a nova abordagem do inconsciente (Ran Hassim, da Hebraica de Jerusalém, entre outros), os processos conscientes podem não passar de 5% da atividade mental (para Gazzaniga, seriam 2%). Tudo o mais é inconsciente. Falar, por exemplo: você não cata as palavras uma a uma. Simplesmente experimenta o fluxo de ideias, e sua mente as recobre de palavras e gestos. Um segundo idioma exemplifica o esforço inglório para tornar automático um vasto sistema de mistérios.
“O que nos faz felizes?” rendeu oportunidade de enfiar o pé na jaca, como visto. Retomo de onde parei, com Rápido e Devagar - duas formas de pensar, de Daniel Kahneman, Nobel de economia em 2002, professor de Princeton.
O livro centra fogo nos vieses de intuição, origem de erros sistemáticos que se repetem de forma previsível. Você acredita saber o que se passa em sua mente, mas, diga, como detecta irritação na voz de alguém ao telefone, ao final de três palavras? E como evita a colisão iminente, se age antes de entender a ameaça? E o problema não se resume a memórias não declarativas, como veremos, com sorte.
Vieses de intuição e heurísticas de julgamento são dois dos objetos conceituais trabalhados na obra, que persegue nominalmente três distinções: entre os eus experiencial e recordativo, entre a concepção dos agentes nas economias clássica e comportamental e entre o automático Sistema 1 e o oneroso Sistema 2.  
I. Começo pelo último. Dois sistemas. Rápido e devagar. Metáforas de agência, qual o ganho? 
Definamos: Sistema 1, rápido, intuitivo, é mais influente do que sua experiência lhe diz que é; e é o autor secreto de muitas das escolhas e julgamentos que você faz. Sim, você. Seu âmago é a memória associativa; está habilitado a construir uma interpretação coerente do que está acontecendo a qualquer instante (parte desse sistema, sediado no hemisfério esquerdo do cérebro, é o que chamaríamos "programa gerador de conversa fiada", e seus produtos são encontradiços em horóscopos e papers de consultores de mercados, por exemplo). Ele pode pensar muitas coisas ao mesmo tempo, desde que rotineiras, já subjugadas pelo aprendizado; sustenta invencível desavença com os exigentes raciocínios estatísticos.
De uma vez por todas, vou exemplificar, seguindo o autor:
                                       17 x 24 =
Seguinte: você detectou rápido o problema, descartou automaticamente 12.609 e 123, por improváveis, mas não se deu ao trabalho de calcular. Até aí, Sistema 1. Se precisasse, calculava metodicamente e obteria o produto. Note que para algumas pessoas a resposta surgiria espontânea, devido a exaustivo treinamento, como rotina incorporada ao Sistema 1. Para o resto de nós, o resultado dependeria de papel, lápis e o concurso de regras de aritmética básica (ou uma calculadora). Repare no trabalho mental: deliberado, laborioso e aparatado = Sistema 2.  
Agora preste atenção:
                                       2 x 2 =
Não está em nosso poder deter a resposta, da mesma forma que a visão, ainda que rápida, de um rosto humano irado, ou sorrindo, ou chateado produz imediato e involuntário diagnóstico de ordem psicológica. Essa aferição ocorre toda vez que vemos um rosto, ainda que não nos demos conta, nem nos importemos. 
Temos, pois (classificação de Stanovich e West, utilizada pelo autor):
Sistema 1: opera automática e rapidamente, com pouco ou nenhum esforço e nenhuma percepção de controle voluntário.
Sistema 2: aloca atenção às atividades mentais laboriosas que o requisitam, incluindo cálculos complexos. As operações do sistema 2 são muitas vezes associadas com a experiência subjetiva de atividade, escolha e concentração.   
Identificamo-nos com o sistema 2, o eu consciente, raciocinador, que tem crenças, faz escolhas e decide o que pensar e o que fazer. E, contudo, é o Sistema 1 o faz-tudo silencioso (embora sujeito a vieses), originando sem esforço as impressões e sensações que são as principais fontes das crenças explícitas e escolhas deliberadas do Sistema 2 (nosso eu, portanto).
O sistema 1 é quem dirige o carro por uma rua vazia; compreende sentenças simples; detecta hostilidade em uma voz; lê palavras em grandes cartazes; encontra um movimento decisivo no xadrez e executa os mais ousados e maravilhosos movimentos ao piano ou cello, se você estudou o suficiente (e, portanto, acumulou memórias não declarativas). Suas capacidades incluem habilidades inatas que compartilhamos com outros animais. Memória é atributo do Sistema 1, máquina associativa que representa a realidade por um complexo padrão de ligações.
O controle da atenção, contudo, é compartilhado pelos dois sistemas.
É próprio do Sistema 2: manter velocidade de caminhada mais rápido que o normal; monitorar a conveniência de seu comportamento numa festa; professar um número de telefone; preencher declaração de imposto de renda; dirigir no "lado errado" da via, como os ingleses; verificar a validade de um argumento lógico complexo. 
O Sistema 2 vive no confortável modo "só me chame quando não souber o que fazer", com uma fração de sua capacidade em uso. O Sistema 1 gera continuamente sugestões para o Sistema 2: impressões, intuições, intenções e sentimentos. Se endossadas pelo Sistema 2, impressões e intuições se tornam crenças, e impulsos se tornam ações voluntárias, diz o autor, sintetizando a interação entre os dois.   
O Sistema 2 é chamado quando surge uma questão para a qual o Sistema 1 não tem resposta; quando se detecta um evento que viola o modelo de mundo mantido pelo Sistema 1. A maior parte do que você (seu Sistema 2) pensa e faz origina-se de seu Sistema 1, mas o Sistema 2 assume o controle quando as coisas ficam difíceis, e normalmente ele tem a última palavra (p. 34).
A divisão de trabalho entre os sistemas minimiza o esforço e otimiza o desempenho.  
O arranjo lembra as demais soluções de compromisso do organismo: alargamento da pélvis das mulheres versus menor capacidade craniana dos bebês; dispendiosos dois rins e dois pulmões, versus morte no caso de falha de um deles e todo um universo de trade-offs angustiantes. Funciona, em regra, mas o Sistema 1 exibe vieses: tendência a erros sistemáticos em circunstâncias específicas. Propende a responder pergunta diversa da que lhe foi endereçada, e se ressente de lógica e estatística.        
E não pode ser desligado, gerando inúmeras oportunidades de conflito com o Sistema 2, e seu custoso mecanismo de razão, lógica e autocontrole. Experimente não olhar a pessoa vestida de modo excêntrico, ou forçar sua atenção num livro de direito. Não consegue? Está tudo bem, não precisa ficar assim.
Feita a distinção (aos trancos e barrancos), transitemos pelas ideias mais representativas, colhidas aqui e ali, no afã de conferir significado à distinção proposta.
1. O Sistema 1 exerce maior influência no comportamento quando o Sistema 2 está ocupado: ficamos menos dispostos (ou capazes) de exercer autocontrole, no chamado esgotamento do ego. Suprimir reações emocionais cobra seu preço, que inclui: reagir agressivamente a provocação, ser impulsivo, sair-se mal em tarefas cognitivas e de tomadas de decisão.
Exercer autocontrole é exaustivo e desagradável. Exige atenção e esforço. Controlar pensamentos e comportamentos é uma das tarefas do Sistema 2. 
2. Efeito ideomotor: uma ideia influencia ações. Nossas ações e emoções podem ser primadas (efeito priming) por eventos dos quais nem sequer temos consciência: a maior parte do trabalho do pensamento associativo é silencioso, oculta-se de nossos eus conscientes.
3. O mundo faz muito menos sentido do que você pensa. A coerência deriva principalmente do modo como sua mente funciona. Da mesma forma como visão tridimensional é construção permanente do cérebro: dispendiosa, não existe fora de nossas mentes.  
É fácil confundir familiaridade com verdade. Conforto cognitivo (derivado de prévia exposição, consciente ou não) predispõe a crenças. Ainda que a familiaridade seja inconsciente: é possível estabelecer uma senha simplesmente tornando familiar uma ordem oculta de símbolos dissimulados numa sequência aleatória. A memorização fica por conta do padrão velado, e será inconsciente. Familiaridade engendra apreço, que pode ser mero efeito da exposição. Conforto cognitivo prediz crenças, como bem sabem os clérigos.
4. Religião e sistemas. (...) nossa prontidão nata de separar causalidade física e intencional explica a quase universalidade de crenças religiosas. [Paul Bloom]: "percebemos o mundo dos objetos como essencialmente separado do mundo das mentes, tornando possível para nós conceber corpos sem alma e almas sem corpo". Os dois modos de causação que estamos ajustados para perceber tornam natural para nós aceitar as duas crenças centrais de muitas religiões: uma divindade imaterial é a causa última do mundo físico, e almas imortais temporariamente controlam nossos corpos enquanto vivemos (...). A religião, e suas verdades estabelecidas pela "autoridade", deixa-se surpreender no Sistema 1. Incerteza e dúvida são domínio do Sistema 2.   
5. Máquina de tirar conclusões precipitadas e o viés da confirmação. Gilbert, alguma vez resenhado, sustenta que a compreensão de uma afirmação deve começar com uma tentativa de acreditar nela: a pessoa deve primeiro saber o que a ideia iria significar se fosse verdadeira. Ele vê a descrença como operação do Sistema 2, o que explica quão custosa, em oposição à crença, automática e preguiçosa. Desacreditar é um trabalho árduo, e o Sistema 2 se cansa facilmente (p. 345).
Daí, a propósito de um experimento: A perturbação do Sistema 2 tinha um efeito seletivo: tornava difícil às pessoas "desacreditar" de sentenças falsas. (...) os participantes esgotados acabavam pensando que muitas das falsas sentenças eram verdadeiras. A moral é significativa: quando o Sistema 2 está mais empenhado em tudo, somos capazes de acreditar em quase qualquer coisa. O Sistema 1 é crédulo e propenso a acreditar, o Sistema 2 é encarregado de duvidar e descrer. As pessoas são mais propensas a embarcar em canoas furadas com o Sistema 2 sobrecarregado, com o ego esgotado, deprimido. O viés confirmatório favorece a aceitação acrítica de sugestões e o exagero da probabilidade de eventos extremos e improváveis [como os milagres].
6. O que você vê é tudo que há: evidência escassa (WYSIATI). Trata-se de um viés de julgamento e escolha que explica por que saber pouco torna tão fácil ajustar tudo que você sabe em um padrão coerente (e ilusório). Coerência e conforto cognitivo nos dizem por que podemos pensar com rapidez e como somos capazes de extrair sentido de uma informação parcial em um mundo complexo. WYSIATI explica: i) superconfiança (nosso sistema associativo tende a se acomodar em um padrão coerente de ativação e de dúvida e ambiguidade suprimidas); ii) efeitos de enquadramento e iii) negligência com a taxa-base. Formamos julgamentos intuitivos acerca de coisas sobre as quais pouco sabemos, ou com base em amostras exíguas.
7. Apresento agora um drama: você muitas vezes tem respostas para perguntas que não compreende completamente, apoiando-se em evidências que não é capaz de explicar, nem de defender. Fazemos isso substituindo a pergunta complexa por outra, não necessariamente mais simples, porém mais familiar, e julgamos ter dado resposta apropriada. Quando as pessoas são obrigadas a julgar probabilidade, em regra julgam alguma outra coisa, acreditando terem tratado a probabilidade satisfatoriamente. À pergunta: "o quanto você está feliz com sua vida?" respondemos, em geral: "qual é meu humor no momento?”; "qual será a popularidade do presidente daqui a seis anos?", respondemos: "qual a popularidade do presidente agora?".           
No contexto das atitudes (...) o Sistema 2 age mais como um defensor para as emoções do Sistema 1 do que como um crítico dessas emoções - ele mais endossa que impõe. Sua busca por informações e argumentos está na maior parte restrita à informação que seja consistente com crenças existentes, não com uma intenção de examiná-las.  
Síntese do Sistema 1: gera impressões, sentimentos e inclinações que, quando endossados pelo Sistema 2, tornam-se crenças, atitudes e intenções; gera intuições especializadas, após treinamento adequado; liga conforto cognitivo com ilusões de veracidade, sentimentos prazerosos e vigilância reduzida; infere e inventa causas e intenções; negligencia ambiguidades e suprime dúvidas; foca na (escassa) evidência existente e ignora a (enorme) evidência ausente (WYSIATI); exibe aversão a perdas e confere peso excessivo a probabilidades baixas.
Os seguintes excertos vêm ao encontro:
(...) sustentar uma dúvida é um trabalho mais árduo do que passar suavemente a uma certeza. (...) tendemos a exagerar a consistência e a coerência do que vemos. O Sistema 1 se antecipa aos fatos ao construir uma imagem rica com base em fragmentos de evidência. Uma máquina de tirar conclusões precipitadas agirá como se acreditasse na lei dos pequenos números [amostras insuficientes para sustentar conclusões]. (...) vai produzir uma representação da realidade que faz sentido demais. O maquinário associativo procura causas. (...) somos ávidos por padrões, temos fé em um mundo coerente, em que as regularidades (...) não aparecem por acidente, mas como resultado de uma causalidade mecânica ou da intenção de alguém. (...) terminamos com uma visão do mundo em torno de nós que é mais simples e mais coerente do que os dados justificam
Previsões intuitivas são quase completamente insensíveis à qualidade preditiva real da evidência. Tendem a ser superconfiantes e extremadas. Previsões extremas e tendência a prever eventos raros com base em evidência fraca são ambas manifestações do Sistema 1. (...) é natural para o Sistema 1 produzir julgamentos superconfiantes, pois a confiança (...) é determinada pela coerência da melhor história que você é capaz de contar a partir da evidência disponível. (...) suas intuições produzirão previsões que são extremas demais e você se mostrará inclinado a depositar excessiva fé nelas
Ilusão de compreensão. Achados:
1. Falácia narrativa (Nassim Taleb): histórias distorcidas de nosso passado moldam nossas visões de mundo e nossa expectativa de futuro. Todo evento preeminente recente é um candidato a se tornar o núcleo de uma narrativa causal. Há uma tentativa contínua de conferir sentido a essa vasta coisa chamada mundo. (...) humanos se iludem constantemente construindo relatos inconsistentes do passado e acreditando que são verdadeiros.
Hélio Schwartsman desenvolve:
A história não é uma ciência no mesmo sentido em que o é a física ou até a economia. Ela não apenas é incapaz de nos dar um modelo por meio do qual possamos fazer previsões como ainda traz a incrível propriedade de tornar o próprio passado incerto. (...)
Tamanha elasticidade é possível porque o cérebro humano não foi concebido para fazer história. Qualquer evento histórico é fruto de um número tão grande de interações entre pessoas e ocorrências (climáticas, econômicas etc.) que é simplesmente impossível calculá-las. Só que nossas mentes não se acanham diante da intratabilidade do problema e adotam sua hipótese preferida como eixo explicativo, ignorando tudo que não se encaixe nela. A história é necessariamente refém de nossos gostos, preferências, condicionamentos, isto é, de nossa ideologia.
2. As inconsistências narrativas (contradições) reduzem o conforto de nossos pensamentos e a clareza de nossos sentimentos. Buscamos narrativas explanatórias simples e coerentes, exagerando a consistência das avaliações: o líder de uma democracia não pode ser genocida; Napoleão não pode ter sido um inepto; pais não podem ser maldosos com os próprios filhos.  
A mente humana não lida bem com não-eventos, afinal, onde estão os contrafatos? A linguagem sugere que o mundo é mais conhecível do que de fato é. Compreendemos muito menos o passado do que acreditamos, vítimas de robusta ilusão cognitiva, o que induz erro sério: avaliar a qualidade e acerto das decisões apenas por sua taxa de sucesso ­(viés de resultado), sem indagarmos se as crenças que embasaram a decisão eram razoáveis ou defensáveis.   
3. Ideia-chave: O maquinário (...) do Sistema 1 faz com que vejamos o mundo como mais ordenado, simples, previsível e coerente do que na realidade é. A ilusão de que se compreende o passado alimenta a ilusão adicional de que se pode prever e controlar o futuro.  
4. Ilusão de validade e habilidade. Confiança é um sentimento que reflete a coerência da informação e o conforto cognitivo de processá-la. Após minuciosa investigação chegou-se a um (quase) consenso de que os negociantes de bolsa de valores disputam um mero jogo de azar. Correlação com habilidades? Zero. Macacos jogando cara ou coroa exibiriam melhor desempenho que os agentes dessa indústria multibilionária. É que eles operam em ambiente preditivo de validade zero. Ao contrário do que diz o bom senso, conjecturas sensatas não são melhores que chutes no escuro.
5. Pesquisadores da universidade Duke coligiram 11.600 prognósticos de diretores financeiros de grandes corporações sobre o mercado de ações no curto prazo. A correlação entre as estimativas e o valor verdadeiro foi ligeiramente inferior a zero! As previsões desses especialistas não valem nada, e não parece que eles se importam. O caso Sadia, com perdas bilionárias em apostas erradas (que puseram fim à empresa) não é isolado, ao contrário do que pensávamos.
(...) pessoas podem manter uma fé inabalável em qualquer proposição, por mais absurda que seja, quando ela é sustentada por uma comunidade de crentes que pensam igual. (...) não podemos suprimir a intuição poderosa de que o que faz sentido em retrospectiva hoje era imprevisível ontem. A ilusão de que compreendemos o passado fomenta a superconfiança em nossa capacidade de prever o futuro.         
6. Agora, uma declaração forte: o mistério de saber sem saber não é um traço distintivo da intuição, é a norma da vida mental. A intuição [para o perito] não é nada mais, nada menos que reconhecimento [de memórias não declarativas]. Confiança subjetiva não é um bom diagnóstico de precisão: julgamentos que respondem à pergunta errada também podem ser feitos com confiança elevada.
Uma apreciação imparcial da incerteza é o alicerce da racionalidade.
Parece, assim, que ambos sistemas rodam um modelo de mundo, mas o do Sistema 2 é analítico, bem aparelhado e favorece os mais honestos esforços argumentativos, usa as melhores ferramentas da razão. Para aqueles que a desdenham, experimente alimentar o mundo, ou construir máquinas e teorias testáveis que desautorizem a razão.
II. Dois eus.
Não faça como eu, leitor, não confunda os Sistemas 1 e 2 com os dois eus. Os sistemas são metáforas criadas para tornar menos árdua a compreensão dos dois modos típicos de atitude mental. Como vimos, o primeiro é rápido, intuitivo e automatizado. Se você treinou cirurgias cardíacas 40 anos, operar passou à órbita do Sistema 1, exceto alguma complicação. O Sistema 2 carrega todos os sectarismos do raciocínio, da análise amarga e demorada, da ponderação ranzinza. Incorpora artefatos sofisticados e comporta grandes conglomerados de ideias em simultaneidade, a exemplo da teoria da relatividade e da evolução. Amiúde trabalha com ideias contraintuitivas, como a mecânica quântica e a teoria da decisão (matriz da estatística).        
Dois eus são outra metáfora simplificadora, justificadas por sua utilidade: o eu experiencial, que responde à pergunta: está doendo agora? e o eu recordativo, que responde à pergunta: como foi isso, no todo? A partir de lembranças esse eu simula uma entidade que perdura no tempo e compõe uma história e um mapa (meio roto e zoado) do mundo. Em sua missão de construir um contramundo interno, ele só presta atenção ao pico e ao final, retendo um traço simplificado de tudo que o eu experiencial vivencia. Um momento representativo, portanto, fortemente influenciado pela regra pico-fim. Assim, em vez de uma soma de vivências, com marcadores de estados emocionais, temos um resumo que negligencia a duração, tanto para o prazer como para a dor. A vida é representada por uma fatia prototípica de tempo, não por uma sequência de fatias de tempo. Portanto, sua "felicidade total" foi a felicidade de um período típico em sua vida, não a soma (ou integral) de felicidade pela duração de sua vida.
É assim que o eu recordativo funciona: entretece histórias e as amoeda para compor uma entidade auto-referida. Acrescente o notoriamente fugaz livre-arbítrio e eis delineada uma coisa bisonha, arbitrária: nós. 
Enfatizando, a memória (abastecida pelo Sistema 1) é afetada pela negligência com duração e regra pico-fim, inconsistências incorporadas ao design de nossas mentes. Se isso solapa os fundamentos do modelo de agente racional, que alegra certas heresias econômicas, tanto melhor. Na avaliação intuitiva de vidas inteiras, picos e finais importam. Duração, não.
Quanto você estaria disposto a pagar por férias em algum paraíso se, ao final, todas as imagens mentais, recordações, fotos e vídeos fossem eliminados? Não muito, não é mesmo? Turismo, esse bem de experiência, é sobre construir histórias e entesourar lembranças aprazíveis.
Então, pense numa cirurgia em que você vai gritar de dor e implorar que o cirurgião pare. Ao final, medicamentos amnésicos restituirão a paz inocente. E então? (...) sinto pena de meu eu sofrendo, mas não mais do que sentiria de um estranho em sofrimento. (...) eu sou meu eu recordativo, e o eu experiencial, que vive de fato minha vida, é como um estranho para mim, revela o autor. A propósito, se você achou desumana a história do sofrimento insuportável tratado a posteriori com amnésicos, bem, você não está muito informado sobre anestesiologia.   
III. Utilidade esperada x teoria da perspectiva: O erro da economia clássica.
O matemático Daniel Bernoulli buscou formalizar a relação entre o valor psicológico da desejabilidade do dinheiro e sua real quantia, o que resultou na teoria da utilidade esperada. Tratava-se de tentar relacionar intensidade psicológica a magnitude física do estímulo (bem-estar experimentado x quantia em dinheiro). Ocorre que a utilidade depende do histórico pessoal de riqueza, não só da riqueza presente. Para um economista clássico, a utilidade de um ganho é aferida comparando-se as utilidades de dois estados de riqueza. Mas o milionário e o mendigo têm visões bem distintas de um ganho de 500 pratas. Com Bernoulli, bastava saber o estado de riqueza para determinar a utilidade.
Para a teoria da perspectiva (derivada da economia comportamental, que rendeu um Nobel ao autor), é necessário investigar o referencial, capaz de influenciar até nos gostos. É preciso estar atento às heurísticas, tais como aversão a perdas e resistência a mudanças (originárias do Sistema 1). Para essa teoria, pontos de referência devem ser considerados e perdas avultam maiores que os ganhos respectivos.
A teoria da perspectiva tenta descrever as escolhas que as pessoas fazem, independente de serem ou não racionais: pesos de decisão não seriam idênticos a probabilidades. As pessoas atribuem valores a ganhos e perdas, mais do que a riqueza, e os pesos de decisão que atribuem a resultados são diferentes de probabilidades.
Conforme estabelecido em economia comportamental, perturbação emocional é associativa, automática e descontrolada; emoção é insensível ao nível de probabilidade. A teoria da perspectiva difere da teoria da utilidade na relação que sugere haver entre probabilidade e peso de decisão. Loteria, por exemplo, é sobre fantasias agradáveis com o improvável. A mera (e remota) possibilidade importa. O mesmo peso excessivo atribuído a eventos improváveis explica a indústria dos seguros: o mais pobre paga um ágio para transferir o risco ao mais rico, em prol de conforto cognitivo.
Para o agente racional (economia clássica) o preço de compra é um histórico irrelevante - e sabemos que não é assim. Curiosidade: para os realmente pobres, pequenas quantias recebidas de dinheiro são percebidas como redução de prejuízo, não como ganho. O problema deles é que todas as suas escolhas se dão entre perdas. Despesas são prejuízos.
Não temos inclinação, nem os recursos mentais para conferir consistência a nossas preferências, e elas não são magicamente ajustadas para serem coerentes, como é o caso no modelo de agente racional.
A economia comportamental nos fala ainda de contas mentais: exceto para os muito pobres, dinheiro é um substituto para pontos em uma escala de autoimagem e realização. O placar está instalado em nossa cabeça, de acordo com regras do incentivo social. A verdadeira moeda é emocional.

Terminada a viagem, hora de conclusões.
O eu recordativo é construção do Sistema 2, lastreado em memórias, domínio do Sistema 1. Se essa proposição o pegou de surpresa é porque você anda a ler o resumo de trás pra frente.
Favorecemos curtos períodos de intensa alegria em detrimento de longos períodos de felicidade moderada, dada a negligência com duração e a regra pico-fim, atribuíveis ao Sistema 1.
Percebeu o conflito? O atento Sistema 2 é quem pensamos que somos. (...) articula julgamentos e faz escolhas, mas com frequência endossa ou racionaliza ideias e sentimentos que foram gerados pelo Sistema 1. Mas erros e vieses nem sempre são atribuíveis ao modo rápido de pensar. O Sistema 2 exibe a racionalidade que pode, não a que desejaríamos. Está adstrito à nossa formação. Se conhecemos a lei dos vasos comunicantes, resolvemos problemas em que a intuição falha. Se soubermos que o acaso não tem memória, e que amostras exíguas induzem erros colossais (a lógica do namoro), estaremos livres de uma série de ilusões de prognósticos.
O Sistema 1 mantém repertório de habilidades adquiridas numa vida inteira de prática, e que produz soluções automáticas e adequadas à maioria das tarefas que nos damos. Quando é encontrado um desafio para o qual uma reação apta está disponível, essa reação é evocada, em geral de forma inconsciente.      
Mas esse sistema não gera um sinal de alerta quando se torna pouco confiável. Respostas intuitivas vêm à mente com rapidez e confiança, sejam originárias das habilidades, sejam da heurística [vieses]. Não existe um modo simples de o Sistema 2 fazer a distinção entre uma reação apta e uma reação heurística [viciada].
Atenção é atributo da consciência? Consciência é só quando nos demoramos na reflexão informada?
O que somos nós, consciente ou inconsciente? Receio que ambas as coisas, nem sempre harmônicas. Conquanto o inconsciente possa chegar a 98% de nossa atividade mental, segundo fundadas suspeitas, melhor prestarmos alguma atenção a esse desconhecido.
Inconsciente, inconsciente... divago, sem atinar com resposta aceitável. Espero que Gazzaniga (Who's in Charge, O Passado da Mente etc), Mlodinow (Subliminar) Eccles e Karl Popper venham absolver-me de minha indigência.
Em meio à perplexidade com os eus experiencial e recordativo (e com os sistemas), suspeito que falar de felicidade pode ser mera provocação. O que torna o eu experiencial feliz não é exatamente a mesma coisa que satisfaz o eu da lembrança.
Hélio Schwartsman arremata, e sinto que com proveito:
(...) Nós, seres humanos, somos ruins em agir com vistas a metas futuras porque, ao contrário do que acreditamos, nossa experiência de "eu" se decompõe em muitos eus que funcionam de forma diversa e têm interesses, às vezes, conflitantes.
É preciso distinguir entre o eu autobiográfico e o eu que vive as experiências. O primeiro é um ator racional, que gerencia as informações e, em geral, toma as decisões. O segundo é pura sensação. É ele que, minuto a minuto, experimenta as dores e os prazeres a que nos submetemos.
E o problema é que o eu autobiográfico age como um tirano, que nunca leva em conta os interesses do eu experiencial. Operando mais com a memória do que com o instante, não hesita, por exemplo, em aumentar a experiência dolorosa aqui e agora, desde que isso lhe pareça necessário para maximizar o que imagina serão suas lembranças futuras.
O eu experiencial, embora menos poderoso na hierarquia cortical, não está desprovido de meios. Ligado às camadas mais primitivas do cérebro, mobiliza recursos como a preguiça e o desgosto, capazes de sabotar até as mais sólidas resoluções de ano novo.
Esse descompasso entre os diferentes eus está na origem de alguns dos mais importantes erros (ou acertos) que uma pessoa pode cometer, consubstanciados em decisões como as de poupar para a aposentadoria, casar-se e ter filhos. O problema aqui é que o eu futuro imaginado quase nunca corresponde ao eu futuro real. É por isso que a busca pela felicidade é mais capciosa do que parece.
É isso aí. Por enquanto.


Para uma nova visão do inconsciente, aqui, em inglês.

Nenhum comentário: